Soube da existência do tal chip da beleza há bem pouco tempo. E confesso que minha primeira reação foi de absoluto pavor. Como era possível que um produto sem registro sanitário e de procedência duvidosa pudesse ser livremente publicizado na internet e ter seu uso banalizado em consultórios e clínicas de estética? 

Antes de mais nada, é bom esclarecer que o chip da beleza e o implante hormonal Implanon (marca registrada da farmacêutica MSD) não são a mesma coisa. O chip da beleza tem em sua composição um hormônio esteróide chamado gestrinona. E o Implanon possui como princípio ativo o etonogestrel e sua função é contraceptiva, muito diferente da indicação do chip da beleza, que varia desde tratamento contra endometriose a aumento de massa muscular e libido. Aliás, lembrem-se: indicações para as quais não há evidências científicas.

A tecnologia de implantáveis que entregam medicamentos de forma gradual sempre foi muito controversa entre órgãos reguladores. O produto seria um medicamento, um dispositivo médico, ou ambos? O Implanon é o único produto com esta tecnologia aprovado no Brasil e seu registro foi inicialmente obtido em 2000, muito antes do arcabouço de regulações sanitárias como conhecemos hoje existir. Naquela época, era praticamente impossível registrar um dispositivo médico implantável que contivesse também algum princípio ativo em sua formulação. A história mudou com a RDC 185/2001 que permitiu que implantes de longa duração com medicamentos fossem registrados como dispositivos de classe de risco 4. E o fato de existir um único produto aprovado no país como medicamento é curioso, pois revela que nenhuma outra empresa conseguiu passar pelo calvário das exigências sobre posologia, estabilidade e validação de performance, muito comuns para os cimentos ósseos e stents com antibiótico cujos dossiers já montei pelas empresas por onde passei.

O fato é que o tal chip da beleza fere a regulação sanitária de ambos: dispositivos médicos e medicamentos. E não existe qualquer possibilidade que o registro desse produto seja obtido nos próximos anos em qualquer dessas modalidades.

Para registrar o chip da beleza como dispositivo médico de classe 4, o fabricante deve obrigatoriamente passar pela rigorosa inspeção de boas práticas da Anvisa. Somente após esta aprovação, o pedido de registro poderá ser solicitado, mas desde que todos os testes de biocompatibilidade, toxicidade, esterilidade, validação de performance, etc componham seu dossiê de registro.

Como medicamento, aí que o chip da beleza não teria mesmo qualquer chance de ser registrado. Isso porque não há evidências científicas de que a gestrinona é eficaz no tratamento de endometriose. Uma busca rápida na base de dados da Cochrane revela que apenas um único ensaio clínico controlado e aleatorizado foi realizado comparando gestrinona e placebo para o tratamento de endometriose. Para piorar, o estudo foi realizado em 1990. Para se registrar qualquer medicamento novo no Brasil, é preciso muito mais do que uma única evidência clínica!

Apendemos durante o desenvolvimento das vacinas que, para registrar qualquer fármaco no Brasil, é preciso que o medicamento passe por todas as fases da pesquisa clínica antes de solicitar a aprovação regulatória para uso na população. Isso significa que ensaios pré-clínicos (realizados com modelos animais) devem apresentar resultados satisfatórios para que o fabricante então solicite a autorização para iniciar os ensaios de fase 1, 2 e 3 tanto para o CONEP quanto para a Anvisa. Somente após apresentar resultados substanciais de eficácia e segurança é que o fabricante então monta um dossiê de registro para apresentar esses dados para a agência reguladora juntamente com outros dados, tais como os testes de esterilidade, estabilidade, toxicidade, etc.

Uma vez aprovado, o uso do medicamento ainda deve ser monitorado pela empresa detentora do registro. Ela deve acompanhar o aparecimento de eventos adversos associados ao produto ao longo de toda vigência do registro, podendo inclusive ser cancelado caso a Anvisa observe algum evento de grave impacto à saúde pública. 

Como um implantável, não seria exagero dizer que o chip da beleza também seria alvo da Portaria 403/2015 do Ministério da Saúde que delibera sobre a gestão de órteses, próteses e materiais especiais e cuja rastreabilidade é extremamente controlada.

Sendo assim, antes que um clínico possa utilizar um medicamento em sua intervenção terapêutica, é preciso que a droga passe por todo esse calvário de requisitos sanitários e aprovações regulatórias. Algo pelo qual o chip da beleza certamente nunca passou.

Segundo a Anvisa, a gestrinona não é registrada no Brasil como princípio ativo de qualquer formulação. Não há também qualquer pedido em avaliação pela agência no momento. O que é um fato um tanto óbvio dada à escassez de evidências científicas sobre a eficácia e a segurança da gestrinona. Se ela realmente funcionasse e tivesse um bom perfil de segurança, certamente já seria um sucesso de vendas pela indústria farmacêutica, tal qual foi o viagra.

Mas os chips da beleza são fabricados por farmácias magistrais e são administrados ilegalmente em pacientes já que nunca passaram por todo o rigor da avaliação regulatória antes de ser livremente distribuído para a população. Essa prática configura inclusive como crime sanitário, já que a Lei 6360 proíbe a comercialização de produtos sob vigilância sanitária sem o aval da Anvisa.

Iletramento científico e total desconhecimento da regulação sanitária são o que enxergamos como resultado da prática dos profissionais de saúde que implantam os tais chips da beleza em suas pacientes. É realmente absurdo que médicos não saibam que não podem utilizar substâncias não aprovadas pela agência sanitária em seus pacientes, que isso se configura como uma prática anti-ética, ilegal e experimental, tratando pacientes como simples cobaias.

Um argumento bastante comum utilizado pelos apoiadores do chip da beleza é o fato de farmácias de manipulação não seguirem os mesmos requisitos sanitários da indústria farmacêutica. Isso é uma grande falácia, pois a diferença entre ambas é apenas sua escala de produção. A escala de produção industrial exige protocolos e requisitos que a escala laboratorial de uma farmácia magistral não necessita. Mas isso não significa que possam comercializar substâncias sem registro e muito menos dispositivos implantáveis! Inclusive o próprio artigo 4° da RDC 67 é claro em estabelecer que “em caso de danos causados aos consumidores comprovadamente decorrentes de desvios de qualidade as farmácias magistrais estão sujeitas às penalidades previstas pela legislação sanitária”

Para piorar ainda mais a situação, o tema virou uma briga de foice na internet. Com a propaganda e oferta ocorrendo livremente nas redes sociais, a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) , a Federação Brasileira de Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e a Associação Médica Brasileira (AMB) já se posicionaram veementemente contra a utilização do chip da beleza. Recentemente, a SBEM solicitou à Anvisa que incluísse a gestrinona na lista C5 que regula os anabolizantes no país. Após o pedido, a Anvisa soltou uma nota proibindo a propaganda e comercialização dos chips da beleza.

Mas como estamos no Brasil, toda essa movimentação apenas inflamou os ânimos dos entusiastas do chip da beleza. Em fevereiro deste ano, empresários do setor (que faturam ilegalmente 600 milhões de reais por ano) se reuniram com o pior Ministro da Saúde de todos os tempos, Marcelo Queiroga, para encontrar soluções para a regularização do produto no país. O que podemos esperar disso? Muito certamente mais alguma tentativa esdrúxula de atropelar as atribuições da Anvisa com projetos de lei estapafúrdios como foi o caso da sibutramina e da ozonioterapia em 2017.  

Os relatos sobre os efeitos colaterais são os mais pavorosos possíveis. Efeitos masculinizantes (engrossamento da voz, queda de cabelo, acne, aparecimento de pelos indesejáveis), alterações de humor, aumento de colesterol, eventos tromboembólicos e riscos de doenças cardiovasculares são os mais comuns. Além da falta de evidência sobre a eficácia da gestrinona, já há dados suficientes que provam que esta droga não apresenta nem mesmo segurança.

Live transmitida pelo Instagram em 06.mai.2022

Referências:

Lei 6360/1976: Dispõe sobre a Vigilância Sanitária a que ficam sujeitos os medicamentos, as drogas, os insumos farmacêuticos e correlatos, cosméticos, saneantes e outros produtos

RDC 185/2001: registro, alteração, revalidação e cancelamento do registro de produtos médicos na Anvisa

RDC 14/2014: requisitos relativos à comprovação do cumprimento de Boas Práticas de Fabricação para fins de registro de Produtos para Saúde (dispositivos médicos)

RDC 67/2009: Normas de tecnovigilância aplicáveis aos detentores de registro de produtos para saúde no Brasil

RDC 200/2017: Concessão e renovação do registro de medicamentos com princípios ativos sintéticos e semissintéticos

RDC 09/2015: Regulamento para a realização de ensaios clínicos com medicamentos no Brasil

RDC 301/2019: Diretrizes Gerais de Boas Práticas de Fabricação de Medicamentos

RDC 406/2020: Boas Práticas de Farmacovigilância para Detentores de Registro de Medicamento de uso humano.

IN 63/2020: Relatório Periódico de Avaliação Benefício-Risco (RPBR) a ser submetido à Anvisa por Detentores de Registro de Medicamento de uso humano

RDC 67/2007: Boas práticas de manipulação de preparações magistrais e oficinais para uso humano em farmácias

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