Por que falar da Sputnik V neste momento? Devemos recontar esta história não só porque a
Rússia segue numa escalada crescente de ataques contra a Ucrânia, mas porque muitas vezes
só o distanciamento do tempo nos faz compreender a imensidão de algum fato histórico.
Quando a campanha de vacinação começou, com a primeiras vacinas aprovadas pela Anvisa,
houve uma corrida brutal para que a Sputnik V fosse também aprovada. Nas redes socias, é
possível perceber a fúria do discurso tomado pela propaganda política com “gritos” como
“LIBERA A SPUTNIK! JÁ LIBERARAM EM 68 PAÍSES! ANVISA GENOCIDA!”
O primeiro pedido de uso emergencial da Sputnik V foi analisado em abril de 2021. Naquele
momento, o Brasil acabava por passar pela segunda onda avassaladora da covid-19 (como
esquecer da falta de oxigênio em Manaus?), a CPI da Pandemia tinha acabado de ser instalada
e havia uma forte articulação do Centrão e do Consórcio Nordeste para que a Sputnik V fosse
produzida e distribuída pela farmacêutica União Química.
A única coisa que essa articulação não contava era com a rigidez da Anvisa. Após o primeiro
pedido e muita negociação virtual, a Anvisa finalmente conseguiu agendar a inspeção nas
plantas de fabricação da Sputnik V na Rússia. E o que se mostrou em solo russo foi um show de
negligência e falta de diplomacia em inspeções farmacêuticas internacionais.
Sete plantas foram indicadas pelo Instituto Gamaleya como fabricantes da vacina. Entretanto,
chegando lá, os inspetores da Anvisa se depararam com uma situação inusitada. Não se sabia
em qual das sete plantas indicadas o IFA correspondente era de fato fabricado. E a inspeção
seguiu sendo realizada em duas empresas, cuja linha de produção não era vacina, mas de
injetáveis semelhantes. Ou seja, não havia Sputnik pra inspecionar. Não bastasse esse fiasco, o
Instituto Gamaleya ainda negou acesso da equipe da Anvisa ao seu Controle de Qualidade. Foi
uma viagem praticamente perdida. Alguns meses depois, a equipe jornalística da Rede Globo,
juntamente com o repórter Álvaro Pereira Júnior, tiveram destino parecido nas filmagens da
série documental A Corrida das Vacinas. Um trabalho jornalístico primoroso que corroborou a
experiência dos inspetores da Anvisa em solo russo.
Após o fiasco da inspeção, chegou o momento de analisar o Relatório Técnico da Sputnik V,
conforme solicita a Lei 14.124/21. O problema é que a Anvisa revirou todas as agências
reguladoras do mundo de cabeça pra baixo e não conseguiu encontrar qualquer relatório de avaliação da vacina dentre os 68 países em que ela acabara de ser aprovada. Neste momento, a
máquina de propaganda midiática da Sputnik V bombava nas redes sociais. México e Argentina
tinham acabado de aprovar o uso da Sputnik V em seus países. Entretanto, o México se recusou
a compartilhar qualquer informação com a Anvisa alegando confidencialidade no contrato com
o Instituto Gamaleya. Na Argentina, a coisa toda foi ainda mais curiosa. A agência sanitária
argentina, ANMAT, não aprovou a Sputnik V, mas o Ministério da Saúde daquele país contrariou
a decisão da agência aprovando a vacina mesmo assim, inclusive com transferência de
tecnologia para fabricação. Por conta do acordo de cooperação entre ANMAT e ANVISA, a
primeira pode compartilhar o relatório que ela própria produziu a respeito da vacina russa com
a nossa agência.
Como se não bastasse a falta do Relatório Técnico, o resto da análise da Sputnik V também foi
problemática.
- Havia falhas metodológicas graves na condução dose ensaios clínicos de fase 1, 2 e 3,
com o teste sendo realizado com vacinas produzidas em escala laboratorial (e não
industrial, conforme pede a regra sanitária) - Presença de adenovírus replicante 300x acima das recomendações dos principais fóruns
de regulação internacional. E além da presença do vírus que se replicava, ainda não
foram apresentados os estudos de biodistribuição que verificam como o adenovírus se
replica nos tecidos humanos - Falta de testes de toxicidade reprodutiva
- Ausência de dados de monitoramento de eventos adversos e farmacovigilância.
Desta forma, o dia 26 de abril de 2021 (dia em que a Anvisa delibera pela primeira vez sobre a
não aprovação do uso emergencial da Sputnik V) se torna um dia histórico. Pois foi o dia em que
a Lei de Transparência do Brasil expôs o modus operandi do governo russo com relação à sua
estratégia geopolítica da Sputnik V.
O caso foi tão emblemático que o Instituto Gamaleya, o governo russo e a página da Sputnik V no Twitter acusaram a Anvisa de espalhar fake news sobre a vacina. E no dia seguinte, o gerente-
geral de Medicamentos, o Gustavo Mendes, em uma coletiva de imprensa abriu a própria documentação enviada pelo Instituto Gamaleya para provar que estavam falando a verdade. Surreal!
Vale aqui a lembrança de que nenhuma multinacional farmacêutica precisou investir um
centavo em propaganda da sua vacina. Pfizer, Astrazeneca, J&J, todas sabiam que a vacina por
si só, no meio da pandemia, seria o maior case de branding que a indústria farmacêutica já
presenciou. Afinal, até a covid-19 aparecer, ninguém nunca havia questionado a marca das
vacinas no posto de saúde.
Apesar da primeira negativa da Anvisa, o pessoal do Consórcio Nordeste não se fez de rogado e
protocolaram um segundo pedido. Desta vez, o Relatório Técnico foi modificado para atender
às exigências apontadas pela Anvisa e a aprovação aconteceu mediante várias condicionantes
que tornaram a importação da Sputnik V para os estados bastante difícil.
Hoje já não se fala mais disso, mas essa movimentação política em torno da Sputnik começou
muito antes do primeiro pedido de uso emergencial ser protocolado. Começou ainda durante a
tramitação das Medidas Provisórias das vacinas, em dezembro de 2020, em que o Congresso
Nacional exige aprovação em 72 horas e que a Rússia fosse incluída no rol de agências que o
Brasil deveria aceitar a aprovação prévia.
A beleza do fiasco da Sputnik V no Brasil se dá pela existência do próprio Sistema Nacional de
Vigilância Sanitária. O caso da vacina russa foi mais uma dentre inúmeras outras tentativas de o
Congresso Nacional atropelar as atribuições da Anvisa. Mas o arcabouço jurídico que permite
que o SNVS e a Anvisa tenham independência política para deliberar tecnicamente é o que faz
do Brasil uma democracia forte.
A agência sanitária do México, a COFEPRIS, sofreu um duro golpe durante a pandemia quando
deixou de ser uma agência independente para se tornar subordinada ao Ministério da Saúde.
No Brasil, seria mais ou menos de o Barra Torres respondesse diretamente pro Marcelo
Queiroga. E na Argentina, a decisão da ANMAT também foi completamente ignorada pelo
governo. Já no Brasil, mesmo que o lunático presidente Jair Bolsonaro quisesse, ele não
conseguiria interferir nos trabalhos da Anvisa justamente porque o arcabouço jurídico que
sustenta o SNVS assim funciona. E esta é a beleza do SUS é que precisamos defender.
Entender o funcionamento dessas instituições e fortalecer sua atuação com transparência é o
que precisamos aprender para defender nossa democracia de arroubos autoritários. A Rússia
nunca foi uma democracia clássica. Lá o poder apenas se alterna de mãos desde antes da
Revolução Russa. Vladmir Putin já acumula 23 anos no poder e é incontestado por qualquer
pessoa de sua equipe. Sua estratégia geopolítica da Sputnik V foi a de não gerar dados, não
publicá-los, não cumprir protocolos regulatórios, encenar e mover uma máquina de
propaganda. Enquanto a Pfizer tem agora 350mil páginas de evidências tornadas públicas pela
justiça americana. Qual das duas vacinas podemos realmente confiar que é segura?
O fracasso da estratégia de Putin coma Sputnik V foi tanto que não duvido que isso tenha mexido
nos brios narcisísticos de um líder autoritário e isolado que precisou inventar a desculpa pra
deflagrar uma guerra e quem sabe assim desviar a atenção da mídia global da pandemia, não é
mesmo?
Live transmitida pelo Instagram em 18.mar.2022
Referências:
7a Reunião Extraordinária de Diretoria Colegiada | Anvisa – YouTube
9a Reunião Extraordinária de Diretoria Colegiada | Anvisa – YouTube
Isto É independente – O mistério da vacina russa | 12.02.2021
CTV News – Russia’s coronavirus vaccine approved for use in Mexico | 02.02.2021
Reuters – Argentina approves Russia’s Sputnik COVID-19 vaccine | 23.12.2020
Buenos Aires Times – Cristina Fernández de Kirchner latest to receive Russian vaccine | 25. 01.2021